ENTREVISTA: Agarrem-se bem, o furacão Capicua veio para ficar.

Está um mau tempo do caraças. Chove a potes, está um frio do cacete e a ventania que se faz sentir insiste em levar consigo carros, árvores, animais e sinais de trânsito. Temos visto nos últimos tempos uma série de intempéries cavalares que vão virando as vidas das pessoas ao contrário, deixando cidades inteiras quase no mesmo estado que aqueles guarda-chuvas mutilados que, de vez em quando, vemos pelos passeios. Ventos, trovões e chuvadas caem no meio de nós mudando a nossa vida, a nossa rotina, por nos fazerem ver as coisas que realmente nos importam. Não seríamos humanos se não nos apercebêssemos daquilo que nos importa quando quase o perdemos. E em Portugal anda a pairar uma nuvem daquelas “carregadinhas”, não cinzenta mas cor-de-rosa. Criada algures por entre centros de altas pressões e frentes frias do Alasca, esta tempestade atingiu o norte do país primeiro e tem vindo a deslocar-se, por entre correntes de significado e nuvens de pujança, cobrindo hoje grande parte do nosso Portugal. Causando estragos nas mentes fechadas e nas plantações de comodismo, a Capicua veio para ficar.
Nunca se percebeu bem quem dá os nomes às tempestades, e nós também nos questionávamos sobre isso, daí querermos saber o porquê de Capicua. “Primeiro porque me chamo Ana, que como qualquer capicua se lê da mesma forma de trás para a frente, mas também porque gosto dessa ideia de “eterno retorno” que fica implícita na circularidade das capicuas e que sugere que todo o fim funciona como um recomeço. Sou muito optimista e identifico-me com essa ideia.” Logo aqui ficamos a ver que isto não se trata de um qualquer aguaceiro. Temos à nossa frente um verdadeiro fenómeno que cada vez mais queremos entender e estudar melhor. Começamos então a dissecar esta força da natureza que vira guarda-chuvas e toldos com a sua personalidade carismática e de valores fortemente vincados. Quando questionada sobre o actual panorama do nosso país, já inundado de injustiça e tristeza, não hesita em trovejar contra a indiferença e o comodismo, “o facto de pela minha formação, familiar e académica, ter sido estimulada para observar e questionar a realidade social e política, faz com que seja tendencialmente sensível ao que se passa. (…) até quem não se interessa minimamente por política, não pode deixar de estar preocupado. As consequências estão patentes na nossa vida quotidiana de forma demasiado gritante para andarmos alienados!” Só com isto já fizemos transbordar o Tejo. Mas todo este dinamismo, toda esta energia, têm lugar na sua música também? Obviamente que sim. Assumindo que procura sempre “incitar ao movimento, à novidade e a essa forma de viver como se fosse sempre o primeiro dia”, Capicua não esconde que isso não é apenas mote musical mas também maneira de viver, pois, referindo-se a toda esta ideia do seize the day , diz-nos que o tenta “(…) praticar na minha vida também”, personificando aquilo que tão bem diz nas suas letras carregadas de energia. Mas de onde vêm todo este furacão da rima? O que construiu esta MC que tem tanto de jovem como de talentosa? Trabalho e dedicação fizeram grande parte, mas todas as influências por trás disso estão bem presentes naquilo que faz tão bem. Apesar de marcada por variadíssimas coisas como “a família (em primeiro lugar, quanto mais não seja por me ter ensinado a língua e pelas referências), a escola, os amigos, a rua, o hip-hop, o cinema, a literatura, etc., etc.,”, Ana destaca a sua “relação com a rua”, nos tempos em que fazia graffiti, como uma parte muito importante na sua definição como rapper, principalmente nas experiências que viveu com os amigos nas ruas e ruelas da Invicta, chegando até a  “criar uma ligação quase afectiva e doméstica (que se mantém até hoje) com algumas ruas e praças do Porto, precisamente pelo acumular de todas essas memórias e pela liberdade que representavam, sobretudo durante a adolescência." Mas como acontece com todo o artista, é sempre “impossível separar as coisas” com exactidão e isolar apenas um factor como o mais determinante no que toca a influências. Temos então uma riquíssima convergência de ventos de liberdade, amizade e amor que dizem muito desta verdadeira Maria Capaz.
Como já disse, todos os grandes fenómenos meteorológicos têm sempre nomes femininos como Katrina, Sandy ou até Arminda. Isso é algo habitual nesta área. Mas no mundo do hip-hop já não é bem assim: quase sempre visto como uma área de domínio masculino. Podendo ser um reflexo da abertura de pensamentos e mentalidades destes últimos anos, essa realidade, felizmente, está a mudar, e nomes como o da Ana começam a destacar-se. Mas agora, poderá o facto de vermos uma mulher a cuspir rimas impiedosamente, algo pouco comum até há bem pouco tempo, servir quase como elemento surpresa para atrair a atenção de quem, como nós, guarda o hip-hop bem junto ao peito? A Capicua acha que não é bem assim, e nós concordamos. “Acho que o facto de ser mulher me deu mais visibilidade, pelo exotismo da coisa, mas acho que passado cinco minutos isso já não é importante para quem está a ouvir o disco”, afirma, concordando que o efeito surpresa de ser mulher e rimar como rima, num primeiro instante, atraí pela surpresa da coisa, mas espera, ao mesmo tempo, “ter  a capacidade de a cultivar sempre, mesmo quando já for normal ouvir miúdas a cantar rap". Seja como for, os passos que já deu ficaram para sempre registados como os primeiros grandes avanços na introdução da miúda no antigo all-boys club dos MC’s, b-boys e companhia limitada.
Como qualquer tempestade que se preze, a surpresa e a imprevisibilidade caracterizam o trabalho desta talentosa senhora que considera a palavra “o mais importante, até porque foi pela palavra que comecei a gostar de fazer música” mas, mesmo assim, não descarta outras variantes da sua arte como por exemplo o spoken word, que, apesar de ter já explorado um pouco, “é uma das coisas que gostaria de explorar no futuro com mais intensidade". Mas a irreverência não se fica por aí! Podemos até vir a sentir uma forte ventania num futuro próximo, visto que poderá estar em preparação outros géneros musicais com o selo de qualidade Capicua, que nos contou que “escrever letras para outras pessoas e para outros estilos de música, seria uma das formas mais estimulantes para fazer aquilo que mais gosto, evoluindo noutros sentidos” e que “posso dizer que, a esse nível, tenho algumas coisas na manga que prometem surpreender”, deixando no ar uma neblina de suspense que nos deixa já a salivar.
As previsões que nos tem chegado aos ouvidos pecam por dias solarengos e temperaturas quentinhas, mas as da Ana mostram-nos um novo ano cheio de sol, calor e brisas agradáveis. Começando já em janeiro, podemos esperar, a partir de dia 31, um  site novo onde, para além de podermos acompanhar mais de perto a fulgurante carreira desta menina, podemos ainda “fazer o download de toda a minha discografia e do meu último trabalho (a sair no mesmo dia) – a mixtape Capicua goes West. São seis faixas, todas com letras inéditas e beats “roubados” ao Kanye West.”. Que delícia!
O mês de Fevereiro também promete temperaturas escaldantes de norte a sul do país com “concertos de apresentação: dia 22 de Fevereiro em Lisboa (na Galeria Zé dos Bois) e dia 1 de Março no Porto (no Plano B). Espero continuar a correr o país para tocar ao vivo o disco e a nova mixtape, assim como preparar uma nova edição para o fim do Verão!” , revelando também um novo projecto, ainda em construção, que irá girar à volta de “um disco em formato quase acústico, com versões de músicas minhas e algumas letras novas, acompanhada à viola e beatbox pelo Mistah Isaac e, no scratch, pelo D-One!” O velho ditado dizia que depois da tempestade vem a bonança, mas quem teve essa ideia, de certeza que nunca passou por um tornado como este. Muitos parabéns Furacão Capicua. 

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