REPORTAGEM: MadeiraDIG 2011

what does it sound like when volcanoes start to whisper?
Não fosse eu um rapaz que pela Madeira viveu toda a vida e possuindo um leque de preferências sónicas algo mutantes, há 4 dias que por cá se marcam no calendário com antecedência. O MadeiraDIG, festival que tem vivido e crescido na Ilha desde 2004, provou novamente este ano que a arte mais experimental e vá lá, desafiante, é bem capaz de ser a única com força para mover assim tantos com tamanha fidelidade. Chega a ser estranho assistir a um festival destes por uma (ainda) terra lusa. Ainda mais é ver-se o quão despercebido este passa pelos que cá moram, temos então um auditório que, ano após ano, vem a ser preenchido na sua grande maioria por germânicos e gentes do norte da europa. É portanto ao aproveitar o agradável clima ameno e belíssimo cenário da ilha, e ao somar a estes alguns dos mais interessantes artistas dos nossos tempos, que  o festival se tem vindo a afirmar cada vez mais como um nome de calibre a ter em conta no panorama internacional.
Desta feita coube a Jerome Faria, artista da casa que marcou presença no palco do festival pela 3ª vez, e a Taylor Deupree, bem conhecido no meio por estar à frente da 12k, abrir as hostes da edição de 2011 e claro, anteceder Tim Hecker na noite de sexta-feira. Diante duma sala muito bem constituída, a parelha provou que não são necessários volumes megalómanos e que se pode ainda fazer música de pavio longo de forma interessante. Foi um pouco como se todo um Apocalipse sónico pairasse sobre a plateia, num todo momento com tanto de inevitável como de improvável, chegando a ser até peculiar o tipo de tensão que intervalos ritmados entre o silêncio e o sussurro foi produzindo. Um nome como o de Brian Eno não pôde deixar de surgir ao cérebro durante a actuação. Notaram-se bem as influências dum Ambient 1: Music For Airports por exemplo, mas quem diz este álbum diz outros tantos. Tal só vem provar que a música é (e cada um vez mais) um pouco como a ciência no que toca à sua constante reinvenção e renovação.
Ravedeath, 1972, álbum do qual já aqui falamos, é não só um dos mais memoráveis álbuns da carreira de Tim Hecker, como também um dos trabalhos mais interessantes que saíram no decorrer de 2011. Foi precisamente esse o disco que o canadiano, um daqueles artistas que inevitavelmente adiciona um significativo peso a qualquer cartaz, veio apresentar à Madeira. Para uma sala às escuras e enquanto grande parte do público aproveitava ainda para passear pela Casa das Mudas ou para beber algo pelo bar, Hecker empurrou o piano prédio abaixo, dando início ao que foram cerca de três quartos de hora de actuação. Sem qualquer tipo de apoio visual, coube a cada qual criar o seu filme interior ao som das tão belas e perdidas melodias, que surgiam flutuando na distorção nostálgica que transbordava do PA. E se é que haviam dúvidas quanto ao facto de Tim Hecker ser um dos mais influentes artistas do género na actualidade, essas hão de ter sido totalmente pulverizadas pela performance que se "viu", e Ravedeath, 1972 tem mesmo o seu lugar mais que reservado num eventual pódio do ano.
Outro aspecto notável deste festival, e que rapidamente se faz notar no after-hours que decorre pelo hotel do festival (Estalagem da Ponta do Sol),  é o facto de praticamente toda a gente que até cá vem estar a fazer qualquer coisa em qualquer lado. Ora na área visual ou na sonora, há uma real troca de ideias por quem cá passa, e poucos ou nenhum evento que me venham à memória têm uma atmosfera tão inspiradora e capaz de deixar uma igual sede pela produção e pela criação.
Sábado foi dia de Oneohtrix Point Never, projecto do norte-americano Daniel Lopatin, e de Deaf Center, duo norueguês constituído por Erik K. Skodvin e por Otto Totland. Não fosse também Replica um dos discos favoritos de 2011, a eventual expectativa para o concerto de Lopatin não era baixa, e o nova-iorquino soube realmente fazer desfilar a sua mostra de colagens e recordações universais. Não houve grande  espaço para as faixas de esqueleto mais "sintético-analógico", ficando grande parte do alinhamento reservado ao mais recente trabalho do norte-americano. E claro, como não podia deixar de ser houve lugar para a fantástica "Sleep Dealer" e para uma versão da melancólica faixa título de Replica
Passados 5 anos, os Deaf Center estão também de volta aos discos com Owl Splinters, um trabalho que vem trazer alguma mudança ao som do duo, que abraça desta feita e sem receio o lado mais negro da sua música. Estruturando a actuação nos loops de guitarra e violoncelo de Skodvin e nas colocadíssimas e delicadas notas de piano de Otto Totland, foram capazes de criar momentos deslumbrantes, vindo a terminar a actuação com chave de ouro quando toda a construção de guitarra ruidosa cedeu, dando lugar ao triste e solitário piano de "Time Spent".
Mas foi realmente no domingo que o mais surpreendente aconteceu. No que toca a Aki Onda, há que admitir que o japonês era provavelmente o mais desconhecido dos artistas em todo o cartaz. Não há assim tanto onde ouvir o seu trabalho por essa internet fora, pelo que grande parte dos que marcaram presença no auditório lá estavam sem saber realmente o que esperar. Sim, era sabido que o agora residente em Nova-Iorque vinha a guardar uma espécie de diário sonoro ao longo de duas décadas, o que realmente foi surpreendente foi a maneira como este nos deu a ouvir as suas cassetes. Com 3 ou 4 amplificadores de guitarra dispostos pela sala, Aki começou lentamente e de forma quase íntima a partilhar connosco o que se sentiam ser recordações muito preciosas. Quando a audiência parecia já anteceder o resto da actuação, foi aí que Aki "apresentou" um micro amplificador portátil, e tocando um dos seus walkmans pelo canal mais sujo do seu pequeno cubo, subiu lentamente as escadas do auditório, entrando de rompante pela fila em que por acaso nos encontrávamos. Foi numa atitude quase punk ou hardcore que o japonês acabou em cima do encosto duma das cadeiras - tudo isto enquanto um grave drone saía do palco, e o seu pequeno cubo continuava a cuspir sujidade, quase estática, e uma luz tão confortável e caseira enchia a sala. Após descer até o palco, não degrau a degrau mas literalmente cadeira a cadeira, Aki, num ritual que parecia quase perigoso e selvagem, atirava a lâmpada pendurada a meio do palco para longe, enquanto se baixava e encolhia, ao tentar evitar um golpe. E de amplificador em amplificador e de cassete em cassete prosseguiu  a actuação, enquanto a luz se foi tornando progressivamente mais fraca, menos brilhante, até a escuridão e uma estrondosa salva de aplausos ter enchido toda a sala.
O nome de Lee Ranaldo dispensa qualquer tipo de apresentação, não tivesse o norte-americano co-fundado nada mais nada menos do que os Sonic Youth. Confesso que não sou o maior fã do mundo da banda, mas é daqueles nomes incontornáveis do rock, um cuja influência no mundo da música não se pode negar. Ranaldo veio acompanhado pelo português Manuel Mota, para um concerto que arrancou morno e que infelizmente assim se manteve até ao final. O volume podia ter estado mais alto e equilibrado, os dois artistas, como se já tivessem feito aquilo vezes e vezes sem conta, mostravam um certo "desinteresse", mas acima de tudo, a actuação durou demasiado. Durou perto de uma hora, demasiado por não haver ali material ou variação capaz de manter toda uma plateia focada durante tanto tempo. Se calhar foi aquele mesmo Lee Ranaldo que mostrou ao mundo o que era arrastar uma guitarra pelo chão, o que era tocar um instrumento como se mutilá-lo fosse o principal objectivo, a verdade é que actualmente já toda a gente viu "x" ou "y" a fazer o mesmo e inclusivamente melhor. Acaba por ser um pouco como a velha história do aprendiz a bater o mestre. Foi pena, e mesmo o único concerto que por cá deixou aquele tão reconhecível gostinho a desilusão.
Se há coisa de 2 ou 3 anos me tivessem perguntado que dois artistas nunca esperava ver cá pela Madeira, quase instantaneamente a resposta seria Nadja e Sunn O))). É verdade que por cá não contamos com os Sunn O))), mas ter um nome como o de Stephen O'Malley a actuar num palco quase à porta de casa, foi algo de quase ilusório. Em primeiro lugar na noite de segunda-feira tivemos Nadja, o duo canadiano de drone e ambient. Aidan Baker e Leah Buckareff, que aproveitaram para vir mais cedo até à ilha e foram presença assídua nos dias anteriores de concertos, trouxeram até ao palco as suas construções sonoras monolíticas. Armados duma guitarra e dum baixo e acompanhados por projecções em tom vintage-psicadélico, o casal proporcionou uma viagem a quem se fez leve o suficiente para flutuar à mercê dos graves que fizeram estremecer a sala durante longos minutos. Por momentos era quase como se fossemos submersos pela cascata que se via cair pelo pano de fundo abaixo, deixando no fim um corpo mole, como se já habituado e moldado a toda aquela pressão e tensão sónica.
Sim, o nome de Stephen O'Malley é facilmente associado a bandas de peso como os Burning Witch, Khanate e claro, aos Sunn O))). Até cá trouxe o projecto KTL, vindo então acompanhado de Peter Rehberg (PITA), artista que por acaso marcou presença na edição passada do festival. Inicialmente fundado para produzir a banda sonora para uma peça de teatro de Gisèle Vienne e de Dennis Cooper em 2006, o duo manteve-se activo lançando uma data de álbuns pela Editions Mego de Rehberg. Munidos de coisa de quatro amplificadores em palco, dois holofotes e máquinas de fumo, a simplicidade chegou a ser quase assustadora. Enquanto tudo se parecia mover ao lento e constante som que rodeava totalmente o auditório - dado ao uso de 4 canais, 2 na frente e 2 atrás da sala - a simbiose entre o fumo e a luz criava estruturas magnificas de sombras e espaços vazios. A guitarra de O'Malley era uma camada de fumo por si só, ora tocada com um e-bow ora em ritmos rápidos ou lentos, num estilo bem distinto daquele característico dos Sunn O))), ou seja, dos graves arrastadíssimos. O som das cordas era deitado sobre uma camada de electrónica densa, e um não seria nada sem o outro. Se o tempo foi congelado ou acelerado não sei dizer, muito menos precisar quanto tempo durou tudo aquilo, ficou mesmo a sensação de ali se poder ficar horas a fio, até a surdez bater à porta.
Recuando um pouco no tempo, domingo foi também dia de workshop com Simon Whetham. O artista britânico que após uma viagem até à Islândia em 2005, tem vindo a captar e a compor com field recordings, tendo já dezenas de peças e discos lançados. Após uma breve introdução pessoal, fomos conduzidos pelo próprio Simon num passeio de olhos vendados pelas ruas da Ponta do Sol, e é realmente surpreendente o que nos passa despercebido quando não estamos a prestar a devida atenção. Após retiradas as vendas e  já num túnel com água a pingar de todo o centímetro quadrado de tecto, chegou mesmo a dizer-se: "wow, obrigado pelo concerto", tal a musicalidade daquele passeio de meia hora. Houve ainda não só tempo para se conhecer de perto algum material, desde microfones até gravadores e pré-amplificadores, mas também para uma curta "excursão" de gravador e micro de contacto em mão, da qual acabou por resultar alguns interessantes registos. Inspirador? Sem dúvida alguma. Se após uma noite de concertos e já prestes a adormecer, tinha não a memória viva de guitarras mas sim de gotas de água a cair no asfalto daquele túnel, creio que isso diz tudo.
Com a actuação de KTL a marcar o final do festival, já se planeavam regressos e trocavam-se contactos. O MadeiraDIG e tudo aquilo que dele faz parte, desde as caras conhecidas e que só ali se re-encontram, até às torneiras teimosas dos lavabos da Casa das Mudas, e claro, aos concertos indescritíveis que de ano após ano ali se assistem, é realmente um daqueles eventos que deixa saudades. A que soaram afinal os suspiros dos vulcões? Quem lá esteve sabe bem - a algo como um "até à próxima, até para o ano".
Por último, um obrigado ao Jerome Faria e à Joana Marote por terem disponibilizado algumas das suas fotografias. Podem ver as restantes por aqui.






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