Reportagem: Ballister na Culturgest

Se isto é jazz então de nada importa desdobrar-me numa conceptualização musical, geográfica e temporal acerca da banda. Já que todo o ser dito jazzístico nutre um especial desprezo por esse parasita, que nos impede de uma aproximação total e desafogada àquilo que é sonoro. Isto é, o que importa reter quando se ouve jazz são as sensações. São os humores. É aquela lembrança de que nascemos mamíferos bípedes, e que quem nos possibilita o equilíbrio na caminhada é a música criada naquele momento. Sons, ruídos, silêncios e toda a sorte de interjeições. Isso é prioritário.
Ao lançarem a pergunta “isto é jazz?”, a Culturgest assume a existência de uma possível dúvida nas mentes dos espectadores. Pergunta pertinente, pois os Ballister não tocam o típico jazz de fato e gravata. Preferem antes, vestir a sonoridade com umas jeans rasgadas e uma camisa verde fluorescente às bolinhas laranjas. São excêntricos na abordagem que fazem ao new free-jazz. Apesar de manterem uma composição tradicional dos trios do hard bop, com a troca do contrabaixo pelo violoncelo, são uns mestres do experimentalismo clássico, dissecando técnicas e alterando-as com uma elegância cínica.
Ao subirem ao palco, percebemos o tipo de ser amorfo ali presente. Passam propositadamente ao lado das palmas do público, pois elas não passam de ruído. Pretendem transmitir a ideia de que quem assume o papel principal na actuação são os instrumentos. São eles que narram a história. As personagens são, portanto, as seguintes: um violoncelo electrificado, que vai beber a energia ao arco e às mãos de Fred Lonberg-Holm; uma bateria, (que mais parece o última colecção de louças e panelas da ideiacasa) que vai servindo de laboratório para a criativa mente de Paal Nilssen-Love; dois saxofones, um tenor e outro alto, que vão sendo estrangulados pela perícia de Dave Rempis.
Sem marcação de compasso ou qualquer tipo de auxiliar rítmico, eles irrompem numa espécie de caos controlado. Não posso afirmar que tenham tocado esta ou aquela música, visto que foram raros os momentos de puro silêncio dos três. Posso porém referir que iniciaram com uma composição compreendida entre as balizas do punk-jazz e do jazz de fusão. Muita agressividade e velocidade de execução. Expirações ofegantes, batidas múltiplas e plurais, cortes afiados, e a presença de uma satisfatória melodia ditaram a tónica dos primeiros momentos do concerto, fazendo lembrar Acoustic Ladyland ou Polar Bear.
Após esta entrada sufocante, diminuiu-se o arroubo, e a sonoridade passou por momentos algo esquizofrénicos, puxando-nos para um cenário lynchiano de permanentes tensões. Aqui, pudemos vislumbrar toda a pertinência de Nilseen-love, tomando ele e a sua panóplia de pratos a liderança da narrativa. Confesso nunca ter visto uma bateria a ser usada de forma tão completa. Não se limitou à fronteira da pele e da batida seca. Ele arranhou, riscou, amolgou, soprou e abanou. Criou o seu próprio mundo de metais e madeiras, no qual ambos os elementos chocavam produzindo ora bramidos, ora gritos. Mundo esse que permaneceu constantemente na órbita dos riffs do violoncelo de Lonberg-Holm. Assumiu-se a perfeita inexistência de tonalidade, estrutura formal, harmonia ou melodia. O que pode explicar o abandono precoce da sala por parte de alguns espectadores. Para esses, aquilo não era jazz.
Rempis, como principal elemento solista, brinda-nos com alguns “saxofones de goela aberta”. Isto, enquanto a improvisação estruturada fica a cargo dos outros dois elementos da trupe.  Em alguns momentos de especial “percussão propulsiva”, pareceu-me que a democracia sonora exigia a presença de umas guitarras lamacentas, tão características da irreverência eloquente dos Sonic Youth. Concluem com instantes de domínio livre e anarquista. Somos transportados para um espaço incandescente onde somos perturbados por unidades físicas ignóbeis. Algo se revela. Contudo, a descoberta já está em curso.
          No fim, vem-me à memória a inquietante pergunta que Tom Waits faz no álbum Mule Variations: “what’s he building in there”. O mesmo se poderia questionar aos Ballister. Podemos não ter a certeza do que eles estão a construir, mas sabemos o que pretendem destruir: as grilhetas impostas pelo som estandardizado. Sorriamos, pois aos nossos pés, abraçadas pelo encarnado vitorioso, vegetam os símbolos do encarceramento auditivo a que estávamos sujeitos.
De assinalar a ultima incursão sonora dos ballister “mi casa es en fuego”. É claro que a casa arde, contudo nós (talvez devido ao estado de sobriedade inadequado) gostamos demasiado do som que as chamas produzem ao consumi-la.
Texto por João Pedro Silva
Fotografia por Francisco Fidalgo

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